Ainda me lembro do primeiro encontro que tive com o autor deste livro. Com seu modo educado e discreto de se apresentar, disse-me que havia se interessado pelos estudos da fotografia como fonte historiográfica quando realizava seu curso de História na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e, simultaneamente, trabalhava na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP). Lá mesmo, pelos porões da centenária escola de Agronomia, iniciou as pesquisas para sua monografia de graduação com fotografias antigas, documentos visuais do passado daquela instituição. O autor buscava um elo entre aquela memória dispersa em imagens fotográficas e a possibilidade de um trabalho realizado pelo historiador na construção de um passado que tomasse como fonte de pesquisa aquele material.
Devo confessar que me senti curioso e pronto para incentivar a realização de um projeto de pesquisa que se propunha trabalhar com documentos não escritos e, muito mais, aceitar o desafio de reelaborar o passado por meio das imagens fotográficas. Trocamos ideias e avaliamos possibilidades. Admito não possuir, então, o alcance das consequências por estar decidindo orientar um trabalho histórico, tendo como base documental a fotografia. Confesso, inclusive, já havia tido contato com algumas dessas pesquisas históricas baseadas em fontes fotográficas, mas elas não me deixaram muito animado, por reiterarem, na maioria das vezes, a versão de história decorrente da análise de fontes escritas.
Passado alguns dias, o autor voltou a me procurar e, para minha surpresa, propôs um projeto ainda mais audacioso. Por sua conta e risco me relatou que havia relido meu livro 1930, O Silêncio dos Vencidos e havia se perguntado sobre a possibilidade de realizar com o documento fotográfico aquilo que eu tinha conseguido fazer com o documento escrito, isto é, desmontar a versão da história elaborada pelos vencedores, que também era a versão da própria historiografia. Sugeriu-me que esse desafio ele enfrentaria tomando como ponto de partida as versões da historiografia do movimento constitucionalista de 1932. No princípio tal proposta me deixou muito animado, pois não podia imaginar que meu próprio trabalho pudesse abrir alternativas tão instigantes de pesquisa. Ao mesmo tempo, senti-me um pouco assustado, por ser a primeira vez que alguém me colocava diante da perspectiva de um trabalho histórico a partir de documentos não escritos dos quais eu não tinha os conhecimentos necessários para a sua análise e interpretação.
Coloquei-me no lugar de Jeziel De Paula e procurei formular as mesmas perguntas que eu havia feito para mim mesmo, alguns anos atrás: “Como é possível escrever alguma coisa nova sobre um assunto já tão visitado por historiadores e outros cientistas sociais? Seria possível dar uma nova interpretação à Revolução de 1932?” Diante dessas indagações, não tive alternativa senão a de, evidentemente, aceitar o desafio de sua pesquisa.
Em se tratando de uma pesquisa de base fotográfica, pude avaliar minha total inexperiência para lidar com esse tipo de documentação. Do ponto de vista, propriamente, metodológico da pesquisa, havia a necessidade de conhecer os meios tecnológicos de elaboração desse documento fotográfico. Isto é, como historiador, compreendi que era necessário saber de que modo as imagens do mundo exterior eram captadas pelo aparato fotográfico no período histórico da pesquisa (entre as décadas de 20 e 30 deste século) e quais as possibilidades de manipulação dessas mesmas imagens, por parte daquele que fotografa. Além disso, perguntava a mim mesmo como seria possível o desvendamento de um silêncio sobre o passado a partir de um trabalho minucioso da composição técnica das imagens. De um momento para outro, passei a me dar conta, a partir da pesquisa de Jeziel De Paula, de que a historiografia de 1932 não tinha sido traída apenas por imagens que haviam sido manipuladas ideologicamente pelos sujeitos sociais e políticos. Mais do que isso, havia sido traída pelas próprias fotografias do período, principalmente porque os historiadores que se aventuraram a trabalhar com as imagens fotográficas não tinham meios e instrumentos para analisá-las.
Diante de tal constatação, absolutamente surpreendente e a que o leitor terá o prazer de saborear ao ler este livro, ficou-me muito claro aquelas proposições teórico-metodológicas do historiador italiano Carlo Ginzburg, a respeito do modo como os historiadores procuram reconstruir a realidade do passado a partir de sinais e pistas que nos são deixados por esse passado. Pude perceber que esses indícios não são evidentes e, assim como no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, apesar das evidências estarem diante de nossos olhos, necessitamos de meios para poder apanhá-las e desvendá-las.
Nesse momento, verdadeiramente, começa e ganha consistência o trabalho do historiador. Ele não é um colecionador de documentos, nem aquele que sabe contar uma boa história, mas alguém que consegue captar a realidade do passado a partir de pistas e sinais, muitas vezes, fugidios. A história, por isso mesmo, é operação de conhecimento e não rememoração, nem tampouco compilação de fontes documentais, e muito menos um anedotário interessante.
O livro que o leitor tem em mãos oferece essa oportunidade de acompanhar o modo como o historiador persegue as pistas, analisa-as e interpreta-as, buscando captar através dessas operações de conhecimento a realidade do passado. Entretanto, o que é mais envolvente no trabalho realizado por Jeziel De Paula é o modo como desmonta as armadilhas dos documentos históricos, nesse caso, fotografias. O autor põe o seu conhecimento de fotógrafo a serviço da pesquisa histórica e o resultado interpretativo que obtém é extremamente instigante. Não é só a interpretação global do acontecimento de 1932 que é aqui renovada historiograficamente. Ao contrário, o mais envolvente neste trabalho é a pesquisa do detalhe, a descoberta de matizes que mudam a ótica de percepção do passado, numa obra que busca inspiração em Carlo Ginzburg, em sua pesquisa com a iconografia de Piero de la Francesca.
Utilizando-se de suspeita e de dúvida como procedimento, no melhor estilo de um leitor de romances policiais de Allan Poe, Jeziel De Paula acaba alcançando aquilo que considero o mais importante de seu trabalho: desmontar, uma vez mais, as sólidas bases onde se assenta o edifício da história contada do ponto de vista dos vencedores de 1930. Ao contrário dos vencidos de 1930, os vencidos desta pesquisa, paradoxalmente, construíram uma história, interpretada pelos vencedores como a história de uma traição nacional. Essa história contada pelos que perderam a guerra civil de 1932 é vista como conservadora, reacionária e, principalmente, contrarrevolucionária. Justamente por duvidar da versão dos vencedores – sem cair no oposto de aceitar como verdadeira a versão dos vencidos –, Jeziel De Paula consegue nos oferecer uma interpretação inovadora de um período decisivo da história da República no Brasil.
Assim, este livro está em permanente diálogo com a historiografia. Mas esse diálogo não é uma sequência estéril e pedante de argumentos e contra-argumentos que costumam povoar muitos trabalhos acadêmicos. A crítica historiográfica, nesse caso, é crítica de memória histórica dos vencedores, que se transformou na única verdade histórica sobre um passado não muito distante da história republicana. É uma crítica às versões da história da Revolução de 30, que ainda circulam em teses universitárias, como em livros escolares.
Mas o trabalho de Jeziel De Paula tem também o mérito de explorar o modo como se dão os deslocamentos e deslizamentos das palavras-conceito, como revolução, ditadura, democracia e progresso, quando defendidas por agentes sociais diferentes. Este livro nos revela, portanto, que as palavras não têm sentido e nem significados unívocos na luta política e que elas adquirem força inesperada quando circulam entre vários agentes sociais. Mas, além disso, o autor consegue mostrar essa polissemia de significados das palavras não por meio de documentos escritos, mas, centralmente, por meio de riquíssimo material fotográfico.
Como o leitor deve ter notado, apenas procurei despertar a sua curiosidade para a leitura de um texto de história que surpreende pelas suas potencialidades de interpretação. Quero dizer com isso que, ao final da leitura, com certeza ficamos esperando mais, porque damo-nos conta de que, com trabalhos como este, a história está em permanente construção.
Edgar Salvadori De Decca
Dep. História - IFCH - Unicamp